Page 22 - DEUSA DAS LETRAS
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Dário Teixeira Cotrim (Org.)
Com cem anos de existência, ela pode pensar e falar o
que quiser. Como foi criada no rigor do começo do século XX,
não precisa sentir-se presa ao que se convencionou chamar de
conveniência no pensar. A patrulha ideológica pode funcionar
para os outros, não para Dona Yvonne. Ainda assim, prevendo
o pensamento dos outros sobre os seus, doura a pílula, dizendo:
“todos são iguais, ninguém é pior nem melhor, e eu mesma não
me sinto mais importante do que ninguém”. Reforça que a elite
acabou, e os antes da classe baixa tomaram o seu lugar. São eles
que ditam normas e modas, todos se vestem e se comportam de
forma igual, seguindo a televisão. “Você não se lembra, mas as
empregadas se vestiam diferente das patroas”.
Seu bisneto do coração, de pouco mais de um ano, anda
pela casa usando fralda e um sorriso gostoso. Preocupa-se sobre
em que mundo ele crescerá, devido à poluição e violência. O ser
humano tem aprimorado muito a sua maldade, e isso a ame-
dronta. As pessoas perderam a vergonha. Apresentam-se à missa
e até para se comungar de shorts curtos, blusas tomara-que-caia
com a barriga de fora, sem o menor pudor. Nesse particular, ela
sempre foi recatada, até porque o seu marido tinha muito ciúme
e não a deixava usar roupas sem mangas.
Fala de duas amigas que estão gravemente enfermas, e que
também poderá cair de cama, o que tem pavor. Lembro a ela que
cada um tem uma história, e que é melhor esperar para ver. So-
bre a proximidade dos cem anos, emociona-se, imaginando que
poderá não chegar lá, pois seu marido morreu em 2009, cinco
meses antes do centenário. Sugiro que não se impressione com
isso, e que faça de conta que serão os noventa a nove anos outra
vez. Os números inteiros chamam a nossa atenção, fecham um
ciclo. Melhor não exagerar na emoção.
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